"Para além d'outro oceano"
A poesia épica de Pessoa
Claudio Daniel
DEU-ME DEUS o seu gladio, porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me em honra e em desgraça
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
(...)
E eu vou, e a luz do gladio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
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Quando Pessoa não usa a máscara dramática para reviver os titãs da Outra Margem, faz pequenas hommages, breves como inscrições tumulares, num estilo imagético que concilia a técnica dos cromos futuristas de Blaise Cendrars a uma escritura extemporânea:
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Como Circe, na Odisséia, que convoca os heróis mortos a saírem do Hades para dar testemunho de suas penas a Ulisses, Pessoa, em sua necromancia poética, traz à tona os templários do Império — D. Dinis, D. Henrique, D. Fernando, entre outros — para um confronto com a mediocridade de nossa época. Ou, como diz no poema D. Sebastião, Rei de Portugal:
LOUCO, sim, louco, porque quis grandeza Qual a sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Porisso, onde o areal está Ficou o meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nella ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria? |
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Na concepção trágica do poeta, o herói cumpre, contra o Destino, o seu dever, e o momento mais sublime da jornada coincide com o do aniquilamento: “Os deuses vendem quando dão./ Compra-se a glória com desgraça”. A ação heróica, ao projetar o guerreiro para fora de si, destrói o seu ego, liberando a essência imortal para o Nirvana.
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O uso da persona, assim como ocorre com os heterônimos, opera uma despersonalização do poeta, que deixa de ser ele mesmo para se tornar mito e linguagem. Em poemas como Os Colombos (“Outros haverão de ter/ o que houvemos de perder”), Pessoa amplia o eu lírico num sujeito coletivo oculto, o povo português; em outros poemas, transforma em personagens de prosopopéia o Mar, a Vontade e o Destino. De rara beleza é este poema, dedicado ao Mar:
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No poema X, que dá título à série, a "grandeza épica de um povo em formação" (Caetano Veloso) se confunde com o próprio oceano, em um mesmo destino:
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O final do segundo ato não é melancólico; o poeta lamenta o fim da Idade Áurea, mas, naPrece, faz menos o epitáfio do passado que o presságio do futuro: "E outra vez conquistemos a Distancia — Do mar ou outra, mas que seja nossa”.
QUE VOZ VEM no som das ondas Que não é a voz do mar? É a voz de alguém que nos falla, Mas que, se escutarmos, calla, Por ter havido escutar. E só se, meio adormecido, Sem saber de ouvir ouvimos, Que ella nos diz a esperança A que, como uma criança Dormente, a dormir sorrimos. São ilhas afortunadas, São terras sem ter logar Onde o Rei mora esperando. Mas, se vamos dispertando, Calla a voz, e ha só o mar. |







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